Capítulo 1
A sala do apartamento parece menor a cada semana. Era para ser um espaço de estar, como prometia o nome do cômodo, mas com o tempo passou a funcionar como depósito de tudo o que não se encaixa mais nos outros cantos. À direita da porta, junto à parede, encostei um sofá de três lugares, marrom-claro, manchado, com evidentes sinais de uso. Já pensei em cobri-lo com uma manta, mas ela sumiu em algum lugar do guarda-roupa. Esse móvel, aliás, tem gavetas de dois tamanhos: três mais largas, duas menores. Acima delas, um vão aberto onde costumo empilhar as roupas que tiro do varal e são as que acabam sempre à mão. Essa minha prática me levou a usar somente as roupas recém-lavadas, e há meses — talvez anos — que não vejo as que ficam nas gavetas. Uso sempre as mesmas peças, as que estão mais acessíveis e menos amarrotadas. Hoje o sofá serve mais como apoio: sobre ele, eventualmente, deposito algumas camisas que foram pouco usadas e que pretendo usar novamente, antes de colocá-las no cesto de roupa suja.
Em frente, na parede oposta, há um móvel de TV antigo, de MDF escurecido pelo tempo. No espaço das prateleiras que deveriam abrigar livros ou enfeites, acumulei caixas pequenas de papelão — aquelas de entregas — com papéis não abertos, faturas vencidas, manuais de aparelhos que nem tenho mais. Numa gaveta, repousam objetos indefinidos: um controle de videogame, um estojo de óculos vazio e vários carregadores que não servem. A televisão ainda funciona, embora o controle remoto esteja desaparecido, talvez esteja embaixo ou nas frestas laterais do sofá.
Ao lado do sofá, há uma mesinha redonda, com o tampo de vidro rachado numa das bordas. Embaixo dela, enroscado nas pernas de madeira, um fone de ouvido inutilizado e um livro com a capa dobrada que comecei a ler e não terminei. As plantas da casa ficam mais ao fundo. Os vasos próximos à janela de correr, que dá para um prédio vizinho. A luz entra pela manhã e aumenta no decorrer do dia. Isso acontece durante 6 meses do ano. Começa a entrar pela janela em feixes tímidos, no final de março e finda em meados de agosto. As folhas das plantas, quando esqueço de regá-las, ficam murchas, algumas amareladas nas pontas e o caule pende, encostando no vidro.
O tapete da sala é retangular, desgastado no centro, onde costumava haver passagem constante. Hoje, não há um caminho definido. Entre a porta, o sofá e a TV, os objetos fazem uma espécie de labirinto: caixas de sapato, uma mala média fechada e um banco de plástico virado de lado. Há também um aspirador de pó encostado no corredor, mas raramente é usado, porque é muito barulhento. A tomada próxima está com a capa de proteção solta. O fio do aparelho se estende até a cozinha, atravessando o chão da sala como uma linha de tropeço.
Nas paredes, antigas marcas de quadros permanecem como fantasmas: manchas mais claras cercadas por ocre desbotado. Um relógio quebrado permanece acima da porta, marcando 3h12 há meses. Um prego solitário sustenta uma sacola de pano dobrada, onde antes ficavam as chaves. A janela, embora grande, está quase sempre fechada. O vidro tem marcas de dedos e respingos secos de chuva. Ao lado da janela, uma cadeira de madeira com encosto curvo serve agora como cabide improvisado: um casaco, uma bolsa com alças desgastadas, um boné sujo de tinta.
O chão, bege, está arranhado em várias áreas, principalmente próximo às entradas. Um cesto de roupa vazando meias e uma caixa de ferramentas que nunca mais foi fechada. É comum que objetos passem dias ali, ao centro do cômodo, até que sejam empurrados para um canto — não guardados, apenas deslocados. Em muitos casos, esqueço o motivo pelo qual estão ali. Em outros, lembro com clareza demais.
O corredor que liga a sala aos demais cômodos é estreito e nas paredes há marcas do tempo: arranhões, tinta descascando próximo ao rodapé, uma tomada que range ao ser usada. Há dias que a lâmpada dali pisca como uma pálpebra que tremula involuntariamente. O armário do corredor, que deveria guardar toalhas e produtos de limpeza, está com a porta emperrada. Em cima dele, caixas de sapatos, uma sacola de mercado cheia de jornais antigos, e uma lanterna sem pilhas.
Na cozinha, as coisas não são muito diferentes. Sobre a mesa de fórmica, vivem objetos que não pertencem à cozinha: um ventilador, duas cartas ainda fechadas, uma revista do ano passado. Os armários superiores estão desorganizados, com latas empilhadas de qualquer jeito, vasilhas sem as tampas e muitas tampas sem vasilhas. Na parte inferior, há um vazamento intermitente: panos de chão são deixados sob a pia como contenção improvisada.
Há pouco barulho no ambiente, somente os sons de funcionamento da casa — o motor da geladeira vibrando intermitente, o estalo do móvel de madeira à noite. Às vezes, penso que os objetos todos também fazem ruído. Um ruído que não se ouve, mas se percebe: suspeito que exista alguém no quarto ao lado, mesmo em silêncio.
A ideia de arrumar tudo já me ocorreu. Mas para onde vai o que se tira? Já tentei descartar alguns entulhos — sacos de coisas que enchi e levei até o depósito do prédio. Por alguns minutos, a sala parecia maior. Mas, ontem tropecei numa sacola com latas de cervejas vazias, caí sobre uma garrafa de vidro e cortei meu cotovelo. O vizinho de baixo reclamou do barulho. Eu senti vontade de chorar, mas não consegui. Me sentei no chão entre as sacolas e os cacos. Acendi um cigarro, enquanto pingava um pouco de sangue do cotovelo. Me senti estranhamente confortável por um breve momento. O silêncio da sala era como uma cortina velha que não se lava mais. Nenhum som vinha do andar de cima, nem da rua. Apenas o ruído contínuo da geladeira e o tique do relógio parado acima da porta, continua marcando 3h12.
Aquela cena me lembrou, com certo atraso, que no próximo sábado viria um pessoal da empresa aqui em casa para tomar uns drinks e jogar alguma coisa. Imaginei os rostos constrangidos ao entrarem, os corpos desviando das caixas, os comentários abafados. Olhei ao redor — para o sofá ocupado por roupas, para o fio do aspirador atravessando a sala como armadilha, para as plantas semiopacas no canto da janela — e percebi que, para receber alguém ali, seria preciso mais do que arrumar. Seria preciso abrir mão de partes que, aos poucos, passaram a me representar.
Peguei o celular e escrevi, sem muita explicação: “Vamos remarcar?”. Apaguei a frase, digitei de novo. Depois deixei o aparelho de lado. Talvez eu cancele. Por enquanto, apenas me levantei com cuidado, recolhi os cacos maiores de vidro e coloquei-os num saco de pão. A mancha vermelha no braço já tinha parado de sangrar. A luz da cozinha invadia a sala e, por um instante, pensei em limpar tudo. Mas antes disso, sentei outra vez no sofá. A TV, desligada, refletia meu rosto levemente inclinado.
Do lado de fora, agora ouve-se gritos e risadas de crianças que brincam pelo condomínio...
Capítulo 2
Há dias que a lâmpada do corredor pisca constantemente, como uma pálpebra que tremula sem controle. O corredor, estreito e abafado, parece ainda mais longo sob a luz trêmula. Cada vez que a lâmpada ameaça apagar de vez, minha respiração parece hesitar junto, como se dependesse daquele fio de claridade para continuar.
No início, pensei em trocar a lâmpada. Peguei uma cadeira, uma lâmpada reserva esquecida no fundo de uma gaveta. Mas quando estiquei o braço para alcançar o soquete, o parafuso estava emperrado. A cadeira oscilava sob meus pés. Desisti. Voltei para o chão e, sem pensar muito, guardei a lâmpada de volta. Desde então, o piscar constante virou parte da paisagem, como o ranger das dobradiças das portas ou o leve sussurrar do vento nas frestas.
A casa inteira parece pulsar num ritmo próprio, lento e hesitante. A cada passo que dou pelo corredor, sinto como se estivesse atravessando um espaço onde o tempo se dilui, onde os minutos se arrastam e se repetem. A lâmpada intermitente lança sombras móveis pelas paredes, como fantasmas sem forma definida. Às vezes, acho que reconheço nessas sombras algo de familiar — o contorno de um braço, o perfil de um rosto —, mas quando me viro para encarar, é apenas a parede nua, manchada em pontos por marcas de umidade.
Não é só a luz que oscila. Há dias em que tudo parece vacilar. No espelho rachado do banheiro, vejo um rosto que não sei bem se é o meu. As olheiras se aprofundaram, os olhos perderam o brilho que algum dia, não tão distante, pareciam carregar. Tento pentear o cabelo com as mãos, ajeitar a gola da camiseta, mas o gesto parece mecânico, inútil. Um ritual vazio.
Volto para a sala. O sofá, afundado em um dos lados, abriga uma colcha fina jogada de qualquer jeito. Perto dos pés do sofá, sacolas plásticas abarrotadas de revistas antigas, papéis sem importância, roupas que já não me servem. Sempre prometi a mim mesmo que faria uma limpeza: separaria, jogaria fora, doaria. Mas a promessa envelheceu junto com os objetos.
A cozinha exala um cheiro misto de café velho e pão mofado. A pia acumula pratos e copos encardidos, como se tivesse engolido todos os jantares que nunca chegaram a acontecer. Perto da geladeira, um caderno de receitas com páginas manchadas se equilibra precariamente sobre uma pilha de cartas não abertas. Algumas são contas. Outras são propagandas. Não sei dizer. Já não tenho coragem de abri-las.
As plantas, nos vasos da varanda, estão morrendo devagar. Um processo quase elegante, como se quisessem poupar constrangimentos. Algumas folhas secas pendem, presas por um fio teimoso de vida, enquanto outras já se desprenderam, espalhadas pelo chão como pequenos epitáfios silenciosos. Havia um tempo em que eu regava cada vaso com cuidado, limpava as folhas, falava com elas em voz baixa. Agora, mal consigo encará-las.
Às vezes, no meio da noite, acordo achando que escutei vozes. Coisas sussurradas que se dissolvem assim que abro os olhos. O corredor, com sua lâmpada piscando, me recebe como um velho conhecido. Levanto, atravesso a casa com passos lentos, o piso gelado sob os pés descalços. Olho pela janela da cozinha: a rua vazia, os postes lançando luz amarelada sobre o asfalto manchado de óleo.
Em noites assim, lembro da voz da minha mãe chamando da cozinha, anos atrás. Ela usava sempre o mesmo tom — entre a impaciência e o carinho — para me lembrar de desligar a luz do quarto, fechar a janela, comer alguma coisa. A lembrança é tão viva que por um segundo sinto o cheiro do bolo que ela assava nas tardes de domingo. Mas quando piscam as luzes, volto a ser apenas eu, entre caixas empilhadas e sacolas esquecidas.
Uma vez, encontrei uma fotografia entre os papéis da estante. Era de um aniversário antigo. A toalha colorida sobre a mesa, os copos de refrigerante, o bolo com cobertura derretendo. Atrás de tudo, meu pai, de braços cruzados, meio sorrindo, meio alheio. Guardei a foto num envelope, sem coragem de deixá-la exposta. Parecia errado que ela estivesse ali, testemunhando o que eu me tornei.
No fundo da casa, o quarto de hóspedes virou depósito. Roupas fora de estação, eletrodomésticos quebrados, livros que já não pretendo reler. Às vezes, abro a porta só para confirmar que tudo ainda está lá, que nada desapareceu. Como se, ao manter aquelas coisas, pudesse preservar intacta uma parte de mim que se perdeu.
O celular vibra, esquecido sobre a mesa. Uma mensagem de um número desconhecido: "Oi, tudo bem?". Não respondo. A ideia de iniciar qualquer tipo de conversa me exaure. Não há novidades para contar. Não há histórias que valham a pena serem relembradas.
A tarde cai, e a luz que entra pela janela desenha padrões estranhos no chão da sala. As sombras das plantas mortas projetam figuras deformadas nas paredes. O tempo escorre devagar. Levanto para acender outra luz, mas a lâmpada do teto também falha, emitindo um brilho vacilante antes de se entregar à escuridão.
Aceito a penumbra como se fosse natural. Como se não houvesse outro modo de existir. No rádio antigo, que mal funciona, uma estação toca música instrumental quase inaudível. Violões tristes, flautas dispersas. A trilha sonora perfeita para este cenário de coisas inacabadas.
E é assim, entre sacolas, sombras e luzes trêmulas, que mais um dia termina. Sem grandes acontecimentos. Sem conclusões. Apenas o lento acumular de silêncios e objetos.
Capítulo 3
No corredor estreito que separa a sala da cozinha, a luz fraca de uma lâmpada desnuda as imperfeições das paredes. Pequenas manchas de umidade se espalham junto ao rodapé, lembrando mapas antigos, desenhados sem intenção - pareidolismo. A cada passo, o piso de tacos gasta um som oco e resignado.
A primeira porta à esquerda leva a um pequeno banheiro. O espelho acima da pia está manchado por respingos e uma fina camada de poeira, refletindo uma imagem desfocada de quem ousa se olhar de forma muito demorada. Dentro do armário de aço — a pintura descascando nas bordas — há medicamentos vencidos, escovas de cabelo com fios perdidos, frascos de perfumes esvaziados pelo tempo.
Nem sempre foi assim.
Há anos, a mesma casa abrigava fins de tarde cheios de risadas e panelas tilintando. Lembro-me de Joana sentada à mesa, as pernas balangando, pequena demais para alcançar o chão. Ela insistia em colorir a toalha de mesa com canetinhas, traçando universos inteiros em cada mancha.
Joana.
Pensar nela é como passar a mão por um tecido gasto: à primeira vista, parece liso, mas um pouco de pressão revela todas as falhas e rasgos que o tempo deixou.
Passei pela porta do quarto dela hoje. Está fechada. Está sempre fechada. O quarto continua como no dia em que ela foi embora: a cortina lilás desbotada pelo sol, os brinquedos empilhados sem ordem, a cama feita de um jeito apressado. Evito entrar. Parece que invadir o espaço seria um tipo de traição silenciosa.
Voltei à cozinha, buscando um café que sei que não está pronto. Peguei a chaleira — a mesma de cabo derretido — e deixei a água esquentar. O chiado crescente preencheu o ambiente como um lembrete de que ainda existe alguma coisa funcionando.
Enquanto esperava, o olhar recaiu sobre uma caixa de papelão no canto da cozinha. Era uma caixa comum, daquelas que usamos para carregar coisas de uma casa para outra. Estava fechada com fita adesiva amarelada e, em um dos lados, reconheci uma letra infantil — "Tesouros" — rabiscado de forma trêmula.
Nunca tive coragem de abrir.
Encostei o pé nela sem querer, e o som surdo do contato me trouxe memórias. Lembrei de quando Joana decidiu esconder seus "tesouros": pedras pintadas, pedaços de papel colorido, conchinhas que ela catava quando íamos na praia. Tudo o que ela achava bonito e queria guardar do mundo. Ela tinha centenas de brinquedos, muitos ursinhos de pelúcia, bonecas, carrinhos, mas a maior parte do tempo ela brincava com caixas de papelão, pedrinhas, canudos, copos descartáveis, folhas de papel com desenhos que ela fazia. Curiosamente, percebo agora que nós dois, de formas distintas, praticamos o mesmo gesto: guardamos o que não sabíamos como deixar para trás.
A chaleira apitou.
Preparei o café e sentei na mesma cadeira bamba de sempre. O cheiro quente se espalhou pela cozinha e atravessou o corredor.
Ao tomar o café, reparei em outra coisa: junto à porta de entrada, sobre uma pequena prateleira improvisada, há uma foto emoldurada. Na imagem, estávamos os três: eu, Joana e Laura. Laura sorri despreocupadamente, como quem não se importa de sair com o cabelo bagunçado. Joana segura uma bexiga azul, olhando para o alto, distraída e feliz.
Laura.
O nome se desenrola com dificuldade na mente. Depois que ela partiu, a casa ficou maior por uns dias — grande e oca — e depois, lentamente, começou a encolher, tomada pelo que restou. Nunca entendi direito quem foi embora primeiro: ela ou eu.
Talvez tenhamos se perdido mutuamente, cada um enroscado em seus próprios entulhos invisíveis.
Levantei da cadeira e caminhei até a estante, arrastando a ponta do chinelo no chão. Peguei a moldura com as duas mãos. Era mais leve do que lembrava. O vidro estava embaçado. Passei o dedo sobre o vidro, tentando limpar. Quase pedi desculpas, em voz alta, pela negligência, mas engoli o impulso. Em vez disso, apoiei a foto no peitoril da janela, apoiada na tela de proteção que colocamos quando ela nasceu.
Voltei à mesa e terminei o café. Não estava lá grande coisa, mas servia.
De onde eu estava, dava para ver o corredor. A luz da lâmpada piscava de novo, uma piscadela irregular. Aquilo me incomodava muito. Mas eu sempre tenho uma saída para isso. Bastava desligá-la ou simplesmente olhar em outra direção.
Não era só a casa que acumulava coisas: era a própria vida, sedimentando-se em camadas finas e difíceis de remover. Pequenas escolhas não feitas, palavras não ditas, promessas esquecidas.
Lá fora, ouvi o latido distante de um cachorro. Alguém bateu a porta do prédio com força. Sons normais, banais, mas que me lembravam de uma realidade onde as coisas continuavam se movendo. Aqui dentro, os ponteiros do relógio parado me lembravam que eu deveria trocar as pilhas.
Me levantei, finalmente, empurrando a cadeira com um rangido seco. Caminhei até o pequeno quarto de serviço. A porta rangeu ao abrir. Lá dentro, caixas, sacolas e objetos que não consegui jogar fora. Uma necrópole de indecisões.
Ali, encontrei outra lembrança: um pequeno casaco vermelho, dobrado de qualquer jeito sobre uma pilha de livros antigos. Era de Joana, lembrei. Ela o esqueceu na escola uma vez, e precisei buscá-lo entre centenas de peças esquecidas. Ri sozinho, lembrando da expressão dela ao reencontrá-lo, como se fosse um tesouro perdido. Não foi a única vez que precisei resgatá-lo. Um domingo desses, acordei com Joana chorando porque não encontrava esse objeto de importância singular. Mesmo sem esperança alguma de recuperá-lo, levantei-me de ressaca e fui ao bar que fomos na noite anterior. Confesso que foi apenas para demonstrar esforço, antes de desistir dessa empreitada. A pressão era imensa, ela tinha certeza de que eu teria sucesso. Mas contrariando minhas expectativas (que era zero), encontrei o casaco vermelho, repousando entre o fim da calçada do bar e o início de um gramado na frente da casa vizinha. Quando cheguei em casa, vi um olhar de felicidade tão genuíno que é difícil de ser repetido.
Naquele momento, retornei das lembranças, como quando acorda-se no meio de um sonho que parece real. Toquei o tecido, agora áspero e esmaecido. Uma parte de mim quis juntá-lo aos demais objetos no quarto dela, mas a outra parte, concluiu que seria só mais um movimento de encaixar o passado onde ele não cabe mais.
Me veio à mente uma reflexão: como ela poderia ter esquecido desse casaco? O que mais ela esqueceu desde que foi embora?
Fechei a porta devagar.
Voltei à sala e, sem pensar muito, comecei a empilhar algumas caixas. Empurrava-as com o pé, arrastando-as para formar um espaço livre perto da janela. Não era uma arrumação real. Mas já era algo.
Sentei no chão, encostado na parede, sentindo a superfície fria através da camiseta fina. Fechei os olhos.
Por um momento breve e raro, o peso do que ficara para trás não pareceu tão insuportável. Apenas o suficiente para respirar, sem a sensação de afogamento.
Ouvi a chaleira apitar de novo — algum erro, algum resíduo de calor — pensei em abrir a porta da varanda.
Talvez, amanhã.
Capítulo 4
Tenho acordado mais cedo, antes do despertador tocar. Criei uma certa repulsa pelo som do alarme.
Faço café, como de costume. Fico curtindo a preguiça e o tédio até perder a noção das horas. Certos dias parecem mais longos que o normal. O dia passa... as ideias são raras, os vultos estão constantes... o dia finda...
Voltei a dormir algumas noites no sofá. Não raramente, tenho preferido a sala, talvez pelo barulho da geladeira, que me faz companhia. Me levantei de madrugada e enquanto tomava água, me veio lembranças de quando acordava, pela manhã, cansado e me deparava com a casa cheia de movimento: o barulho da louça sendo lavada, som da TV tocando uma música animada, destoando da minha disposição momentânea. Pelo chão, brinquedos espalhados desde o corredor até a sala, parecia indicar uma trilha que eu deveria seguir.
Hoje, não sei se pelo fato de tudo estar igual há tanto tempo, passei a notar muito mais detalhes e tenho a sensação de que algumas coisas vêm aparecendo fora do lugar. Já me peguei observando a porta do quarto ao lado. Algumas vezes, ela está aberta, em outras, está fechada. O que me deixa desconfortável é que não costumo entrar nesse quarto.
Ontem à noite, deixei o prato da janta na pia e me encostei na parede do corredor. O barulho da lâmpada piscando, já conhecido, se misturava a um som baixo, vindo do fundo do apartamento. Como um arrastar lento, talvez papel sendo movimentado, talvez uma cadeira raspando leve no piso. Pode ter sido a minha memória preenchendo lacunas.
Na manhã seguinte, vi que tinha mais um prato sujo na pia. Pensei: “Droga! Essa louça suja parece que dá cria!”. Ao pegar a xícara de café, notei algo estranho sobre a mesinha da sala: um livro aberto, mais ou menos na metade, com a lombada virada para cima. Não me lembro sequer de tê-lo retirado da estante nos últimos meses. Passei os dedos pelas páginas, como se esperasse encontrar algum sinal que explicasse aquilo. Não encontrei. Fechei o livro e o guardei.
Abri a janela da cozinha para ventilar, e o vidro fez um estalo seco, como se estivesse acordando. Naquela hora, pensei em Laura. Não porque ela morasse aqui, mas porque ela teria feito uma observação exata sobre a sequência dos sons, como se fosse possível identificar intenções a partir da repetição de ruídos. Laura sempre teve esse dom de perceber o que passava despercebido. Lembrei dela arrumando um armário com gestos precisos, retirando objetos e dizendo “Isso aqui não é daqui”, mesmo que fosse. Eu sempre deixo coisas sobre a mesa e isso a irritava. Uma noite que chegamos tarde em casa, eu deixei minha mochila sobre a mesa e ela deixou a bolsa. No outro dia, acordei com ela reclamando desse meu mau costume. Que eu nunca mudava. Que era difícil conviver com uma pessoa desleixada assim. Eu fui até a sala e argumentei que deixamos nossas coisas sobre a mesa porque chegamos cansados e fomos dormir. Inclusive, ela já tinha retirado a minha mochila, mas a bolsa dela continuava lá. Mas, tentar justificar era inútil.
Essas memórias sempre me rodeiam.
Antes de voltar a dormir, verifiquei se a porta da frente estava trancada. Um gesto que faço várias vezes. Passei a chave na porta do quarto ao lado. Apaguei as luzes, já deitado, ouvi o estalo de algo no outro cômodo. Pensei em levantar. Porém, não ouvi mais nada. Me convenci de que era madeira cedendo ao frio da noite.
Na manhã seguinte, notei que a porta do quarto ao lado estava entreaberta. Fui verificar a fechadura e me certifiquei que foram dadas as duas voltas na chave, porém o trinco não tinha encaixado. Eu poderia jurar que esta porta foi fechada corretamente.
Capítulo 5
Era quase meia-noite quando decidi sair. Meu cigarro acabou e a vontade de fumar foi maior do que aquela preguiça. Peguei a chave, a carteira e fui caminhando até a conveniência que fica na esquina do outro quarteirão. A rua vazia, pelo menos era iluminada. As calçadas tinham poças rasas da chuva que caiu durante a tarde.
Dentro da loja, a intensa luz fluorescente me ofuscou um pouco. Parecia que estava entrando em um hospital. Próximo aos freezers, uma mulher, de cabelo curto, vestindo uma camisa larga e short jeans, estava escolhendo uma cerveja. Eu peguei a cerveja de sempre e a carteira de cigarros que me fez vencer a indolência.
Ela ao aproximar-se do caixa, carregando também uma barra de chocolate, me olhou como quem reconhece alguém familiar.
— Oi — disse ela.
— Oi — respondi, automaticamente.
Ela se virou para mim com a garrafa na mão:
— Essas aqui têm gosto de sabão, mas é o que tem. Você já provou essa?
— Já. Achei ruim. Mas estando bem gelada, melhora um pouco.
Ela sorriu.
— É ruim, mas vai me ajudar a passar por essa longa madrugada.
Ela se adiantou e pagou primeiro. Antes de sair, esperou ao lado da porta.
— Mora por aqui?
— Sim. Naquela rua sem saída, perto da oficina.
Ela balançou a cabeça levemente e movimentou as sobrancelhas demonstrando que conhece o lugar.
— Moro na travessa do mercado. Aquele prédio com varanda azul.
Iniciamos uma conversa que parecia agradar a ambos.
Do lado de fora, a temperatura tinha baixado um pouco. Caminhamos juntos até a esquina. A sensação era de que não queríamos nos despedir ainda.
— Se quiser... — começo a dizer, meio sem jeito — a gente pode tomar essas cervejas lá no meu apartamento. Esse horário aqui é bem esquisito. Tenho cigarro também.
Ela me olhou com os olhos semicerrados, como se estivesse avaliando algo.
— A parte do cigarro me convenceu.
— É bem atípico essa possibilidade de conversar com alguém essa hora.
Subimos as escadas do prédio. O apartamento estava como deixei, com a luz da sala ainda acesa. Por um momento, pensei ter ouvido um rangido vindo do corredor, mas ignorei. Abri uma das cervejas e entreguei a ela. Sentamo-nos no sofá.
Ela observava os objetos ao redor com curiosidade silenciosa.
— Mora aqui há muito tempo?
— Tempo suficiente pra não ter certeza de quantos anos fazem.
Ela riu baixo e puxou uma tragada do cigarro.
— Gosto de lugares com história e aqui parece ter muita.
Conversamos por um tempo sobre filmes antigos, livros que começamos e não terminamos, vizinhos. Em dado momento, ela se levantou e foi até a estante.
— Esse livro aqui... — disse ela, segurando um de capa vermelha — ...esse é do Cortázar, né?
— Sim. Gosto dos contos dele.
Ela voltou e se sentou de pernas cruzadas.
— Falando em contar histórias... você curte Tarantino?
— Muito. Gosto do jeito que ele embaralha as coisas. A ordem dos fatos. A estrutura não-linear de Pulp Fiction, por exemplo, é muito massa e exige que a gente fique atento o tempo inteiro.
Ela deu um sorriso largo dessa vez.
— Isso! E o jeito como ele faz a violência ser... quase bonita.
— Kill Bill tem isso demais. Ah, lembrei da luta da Noiva com aquela gangue. É quase um balé, só que com espadas ditando o ritmo da dança.
— Mas cá entre nós, eu sempre preferi a Beatrix ao Jules, por exemplo. A jornada dela é muito mais emocional.
— O Jules tem aquela conversa sobre redenção, o trecho que ele cita uma parte da bíblia e em seguida executam os caras é bem marcante. Mas a Beatrix tem motivações mais cruas. Matar por vingança. E por amor à filha.
— E não é só a luta. É a calma dela. Aquela parte que ela está enterrada viva e consegue sair... eu fico arrepiada só de lembrar. Ela não grita. Ela respira.
— E o Mr. Blonde de Cães de Aluguel que corta a orelha do policial ao som de "Stuck in the Middle with You".
— Tarantino gosta de fazer isso. Contraste. O absurdo com o banal. A música leve e a crueldade.
Ela bebe mais um gole e me encara com um olhar longo, sem dizer nada por alguns segundos.
— E você? Seria mais como quem nesse universo dele?
— Provavelmente, eu seria o cara que está no canto da sala, naquela cena de Pulp Fiction que você falou, que enquanto o Jules faz toda a argumentação e finaliza com bala pra todo lado, o cara tá lá quase imperceptível.
Ela sorri, encostando-se no braço do sofá.
— Talvez eu fosse a motorista do carro. Aquela que leva os outros de um lugar ao outro, mas nunca entra na briga. Não aparece nos créditos principais, mas sem ela a história não anda.
No momento curto em que ficamos em silêncio, percebemos um estalo baixo vindo do corredor. Ela apenas ergue as sobrancelhas, mas não comenta. Eu também não.
— Sabe uma música que ficou presa na minha cabeça por dias depois de ver Pulp Fiction? — ela perguntou, mexendo o dedo no aro da lata de cerveja.
— Qual?
— Girl, You'll Be a Woman Soon, do Urge Overkill. Aquela cena em que a Mia quase morre de overdose.
— Aquilo é muito forte. E ela dançando antes disso, leve... pouco depois ela tá no chão, sangrando pelo nariz. A música ali é quase um presságio.
— E o mais irônico é que a maior preocupação do Vincent era evitar situações que pudesse gerar ciúmes no Marsellus. Imagina, se a mulher do chefe morre enquanto tava com você.
— Isso sim, seria um problema. Mas, entre todas as qualidades que os filmes dele tem, sabe a coisa que mais gosto? É a parte dos diálogos despretensiosos entre os personagens. Tipo, aquela conversa entre o Jules e o Vincent sobre diferenças de como as coisas são na Europa e nos EUA. Eles começam falando sobre haxixe e de repente estão surpresos porque em Paris você pode comprar cerveja no McDonald’s.
— [risos] Lembrei de “Le Big Mac”.
— Muito bom.
— Voltando ao assunto música. Você curte o que?
— Rock clássico, punk, hardcore... coisas barulhentas, mas em certos momentos ouço coisas mais alternativas, que misturam com ritmos regionais.
— Somos dois. Adoro Ramones, mas voltei a fase de ouvir bastante Dead Fish, atualmente.
— Ah! Dead Fish é foda demais. Vez por outra eu ouço também.
— Quando eu escuto “Você” lembro que preciso dizer "não" pra algumas coisas.
— Ouvir War Pigs, do Black Sabbath, me fez tomar coragem pra sair de um emprego. Sem brincadeira.
— Isso é bom demais. Uma música que te coloca contra a parede.
— É quase poético.
— Se você ouvir com a sintonia certa, a música pode te fazer lembrar qual a sua essência como ser humano.
Rimos juntos. A atmosfera parecia um pouco mais suspensa. A luz da sala era a única coisa constante.
Do fundo do corredor, mais um ruído. Dessa vez mais longo, como um suspiro passando por baixo da porta. Ela arregalou os olhos.
— Isso foi vento?
— Provavelmente.
Ela não falou mais sobre isso. Levantou-se devagar, caminhou até o corredor e olhou na direção do quarto. Voltou com um vinil na mão.
— Olha o que eu achei escondido aqui. "Raw Power". Stooges. A gente precisa ouvir isso agora.
Coloquei o disco. A agulha rangendo na introdução fez tudo parecer mais real. Sentamo-nos no chão outra vez, e deixamos o som preencher o espaço.
_______________________
Escrito por: Josenilton Graciano
Crédito da Arte: Thiago Antônio