domingo, 6 de abril de 2025

ENTULHOS


A sala do apartamento parece menor a cada semana. Era para ser um espaço de estar, como prometia o nome do cômodo, mas com o tempo passou a funcionar como depósito de tudo o que não se encaixa mais nos outros cantos. À direita da porta, junto à parede, encostei um sofá de três lugares, marrom-claro, manchado, com evidentes sinais de uso. Já pensei em cobri-lo com uma manta, mas ela sumiu em algum lugar do guarda-roupa. Esse móvel, aliás, tem gavetas de dois tamanhos: três mais largas, duas menores. Acima delas, um vão aberto onde costumo empilhar as roupas que tiro do varal e são as que acabam sempre à mão. Essa minha prática me levou a usar somente as roupas recém-lavadas, e há meses — talvez anos — que não vejo as que ficam nas gavetas. Uso sempre as mesmas peças, as que estão mais acessíveis e menos amarrotadas. Hoje o sofá serve mais como apoio: sobre ele, eventualmente, deposito algumas camisas que foram pouco usadas e que pretendo usar novamente, antes de colocá-las no cesto de roupa suja.

Em frente, na parede oposta, há um móvel de TV antigo, de MDF escurecido pelo tempo. No espaço das prateleiras que deveriam abrigar livros ou enfeites, acumulei caixas pequenas de papelão — aquelas de entregas — com papéis não abertos, faturas vencidas, manuais de aparelhos que nem tenho mais. Numa gaveta, repousam objetos indefinidos: um controle de videogame, um estojo de óculos vazio e vários carregadores que não servem. A televisão ainda funciona, embora o controle remoto esteja desaparecido, talvez esteja embaixo ou nas frestas laterais do sofá.

Ao lado do sofá, há uma mesinha redonda, com o tampo de vidro rachado numa das bordas. Embaixo dela, enroscado nas pernas de madeira, um fone de ouvido inutilizado e um livro com a capa dobrada que comecei a ler e não terminei. As plantas da casa ficam mais ao fundo. Os vasos próximos à janela de correr, que dá para um prédio vizinho. A luz entra pela manhã e aumenta no decorrer do dia. Isso acontece durante 6 meses do ano. Começa a entrar pela janela em feixes tímidos, no final de março e finda em meados de agosto. As folhas das plantas, quando esqueço de regá-las, ficam murchas, algumas amareladas nas pontas e o caule pende, encostando no vidro.

O tapete da sala é retangular, desgastado no centro, onde costumava haver passagem constante. Hoje, não há um caminho definido. Entre a porta, o sofá e a TV, os objetos fazem uma espécie de labirinto: caixas de sapato, uma mala média fechada e um banco de plástico virado de lado. Há também um aspirador de pó encostado no corredor, mas raramente é usado, porque é muito barulhento. A tomada próxima está com a capa de proteção solta. O fio do aparelho se estende até a cozinha, atravessando o chão da sala como uma linha de tropeço.

Nas paredes, antigas marcas de quadros permanecem como fantasmas: manchas mais claras cercadas por ocre desbotado. Um relógio quebrado permanece acima da porta, marcando 3h12 há meses. Um prego solitário sustenta uma sacola de pano dobrada, onde antes ficavam as chaves. A janela, embora grande, está quase sempre fechada. O vidro tem marcas de dedos e respingos secos de chuva. Ao lado da janela, uma cadeira de madeira com encosto curvo serve agora como cabide improvisado: um casaco, uma bolsa com alças desgastadas, um boné sujo de tinta.

O chão, bege, está arranhado em várias áreas, principalmente próximo às entradas. Um cesto de roupa vazando meias e uma caixa de ferramentas que nunca mais foi fechada. É comum que objetos passem dias ali, ao centro do cômodo, até que sejam empurrados para um canto — não guardados, apenas deslocados. Em muitos casos, esqueço o motivo pelo qual estão ali. Em outros, lembro com clareza demais.

O corredor que liga a sala aos demais cômodos é estreito e nas paredes há marcas do tempo: arranhões, tinta descascando próximo ao rodapé, uma tomada que range ao ser usada. Há dias que a lâmpada dali pisca como uma pálpebra que tremula involuntariamente. O armário do corredor, que deveria guardar toalhas e produtos de limpeza, está com a porta emperrada. Em cima dele, caixas de sapatos, uma sacola de mercado cheia de jornais antigos, e uma lanterna sem pilhas.

Na cozinha, as coisas não são muito diferentes. Sobre a mesa de fórmica, vivem objetos que não pertencem à cozinha: um ventilador, duas cartas ainda fechadas, uma revista do ano passado. Os armários superiores estão desorganizados, com latas empilhadas de qualquer jeito, vasilhas sem as tampas e muitas tampas sem vasilhas. Na parte inferior, há um vazamento intermitente: panos de chão são deixados sob a pia como contenção improvisada.

Há pouco barulho no ambiente, somente os sons de funcionamento da casa — o motor da geladeira vibrando intermitente, o estalo do móvel de madeira à noite. Às vezes, penso que os objetos todos também fazem ruído. Um ruído que não se ouve, mas se percebe: suspeito que exista alguém no quarto ao lado, mesmo em silêncio.

A ideia de arrumar tudo já me ocorreu. Mas para onde vai o que se tira? Já tentei descartar alguns entulhos — sacos de coisas que enchi e levei até o depósito do prédio. Por alguns minutos, a sala parecia maior. Mas, ontem tropecei numa sacola com latas de cervejas vazias, caí sobre uma garrafa de vidro e cortei meu cotovelo. O vizinho de baixo reclamou do barulho. Eu senti vontade de chorar, mas não consegui. Me sentei no chão entre as sacolas e os cacos. Acendi um cigarro, enquanto pingava um pouco de sangue do cotovelo. Me senti estranhamente confortável por um breve momento. O silêncio da sala era como uma cortina velha que não se lava mais. Nenhum som vinha do andar de cima, nem da rua. Apenas o ruído contínuo da geladeira e o tique do relógio parado acima da porta, continua marcando 3h12.

Aquela cena me lembrou, com certo atraso, que no próximo sábado viria um pessoal da empresa aqui em casa para tomar uns drinks e jogar alguma coisa. Imaginei os rostos constrangidos ao entrarem, os corpos desviando das caixas, os comentários abafados. Olhei ao redor — para o sofá ocupado por roupas, para o fio do aspirador atravessando a sala como armadilha, para as plantas semiopacas no canto da janela — e percebi que, para receber alguém ali, seria preciso mais do que arrumar. Seria preciso abrir mão de partes que, aos poucos, passaram a me representar.

Peguei o celular e escrevi, sem muita explicação: “Vamos remarcar?”. Apaguei a frase, digitei de novo. Depois deixei o aparelho de lado. Talvez eu cancele. Por enquanto, apenas me levantei com cuidado, recolhi os cacos maiores de vidro e coloquei-os num saco de pão. A mancha vermelha no braço já tinha parado de sangrar. A luz da cozinha invadia a sala e, por um instante, pensei em limpar tudo. Mas antes disso, sentei outra vez no sofá. A TV, desligada, refletia meu rosto levemente inclinado.

Do lado de fora, agora ouve-se gritos e risadas de crianças que brincam pelo condomínio...

 

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Vida Loka (Pt. 4.)

 

Vida Loka (Pt. 4.)


Eu durmo em vigília, vivo sempre armado,

As palavras cortam, um fardo pesado,

As feridas da vida me deixaram assim

E sei o estrago que isso causa em mim.


Sobre rastro de pólvora, vivo atento,

Mas prefiro as rosas a esse lamento,

E eu que um dia busquei um lugar,

Onde o verde das plantas se estende ao luar.


Sonhava com balanços rangendo no tempo,

Ouvindo risos num breve momento.

Crianças brincando e pipas no céu,

Hoje só enxergo vidas ao léu.


É meu amigo, aqui não há paz,

Nossa realidade é onde a dor se refaz.

Não há ilusões, só um mundo ferido,

Em cada esquina há um sonho perdido.


quinta-feira, 9 de maio de 2024

As artimanhas de Boca de Álcool... n3

Já se formavam torcidas para os dois lados e o clima estava tenso. No meio da peleja, Boca de Álcool, em desvantagem, lançando mão de sua esperteza, pediu para ir ao banheiro. Sob vaias e gritos de "vai correr!", foi ao banheiro, dando essa pausa estratégica.

Na volta, já com o ambiente menos tenso, avistou um camarada que havia compartilhado uma experiência na rodoviária uns tempos atrás. Antes de voltar á sua mesa, foi ao encontro do rapaz:

  • - Amigo, você se lembra de mim? Boca de Álcool abordou.
  • - Opa, eu? O dito-cujo perguntou espantado.
  • - Sim, o senhor mesmo. Lembra do dia la na rodoviária, que eu te livrei de uma multa e você ficou de voltar pra cumprir nosso combinado? Até hoje to esperando.
  • - Eita pau pereira! Exclamou o rapaz, incrédulo de tê-lo reencontrado. - rapaz, eu tive uns problemas e acabei não conseguindo voltar no dia, mas passei por lá outras vezes e não te vi mais.
  • - De fato, ando pouco por lá, e como você não cumpriu sua palavra, não voltei mais. Tive certeza que se tratava de mais um tapeador. Meu patrão, eu me deparo com esse tipo de gente todo santo dia. Mas não se preocupe, não vim cobrar a dívida. Quero só saber o nome da pessoa que me enrolou.
  • - Não era minha intenção, major. Eu não minto quando digo que tive problemas naquele dia e que tentei encontrá-lo. Meu nome é David, mas não sou tapeador. Venha! Pode beber aqui comigo que eu pago o que você consumir.

As artimanhas de Boca de Álcool... n2

Em um sábado à noite qualquer, Boca de Álcool encontrou com uma figura também muito peculiar da região, o famigerado Roncoi. 

Segundo a mitologia que acompanha a boemia local, ele atende por essa alcunha devido a um problema de saúde, em que ele precisou extrair um de seus testículos. Alguém o chamou de Roncolho, num passado recente, e com o tempo esse termo se tornou Roncoi. Para incrementar a estranheza da situação, Roncoi guardava consigo o testículo outrora extraído.

Nesse raro encontro folclórico, enquanto bebiam no Bar do Arlindo, lá pras tantas da madrugada, Boca de Álcool, com fome e afim de garantir um tira-gosto, em um lampejo de genialidade (rsrsrs) sugeriu uma aposta a Roncoi:

- Grande Roncoi, to liso e queria desenrolar um tira gosto. Você pode me emprestar 6,00 contos pra eu tomar um caldinho de peixe?

- Boca, to com pouco dinheiro. Acho que só dá pra garantir meu tira-gosto.

- Mas homi. Me empresta ai, te pago amanhã.

- Dá certo não, Boca.

- Então vamo no carteado? Se eu ganhar você me empresta, se eu perder não perturbo mais hoje com isso e amanhã garanto a primeira lata de cana.

- truco? – Roncoi perguntou animado.

- Isso mermo, quem vai ta aqui. Disse Boca de Álcool.

- Tenho outra idéia: se você ganhar, eu te dou os 6 conto, mas se você perder, voce vai comer meu testículo, eu peço pra Arlindo botar só na churrasqueira.

- caralho, boy, tem como isso não!

 

Depois de muito pensar, a fome falou mais alto e Boca de Álcool aceitou a aposta.

 

Arlindo trouxe o baralho e o jogo foi se desenvolvendo... Os demais ébrios do local aglomeravam-se ao redor da mesa deles,

sábado, 4 de maio de 2024

Crônicas em tiro curto - Juri popular

Um tempo atrás, quando eu morava em outro condomínio, bem popular como o que moro hoje, havia um vizinho que destoava totalmente do padrão, ele tinha uma Ferrari que não custava menos que cinco vezes o valor padrão desses apartamentos.

A curiosidade de todos foi aguçada quando em um certo dia, a rotina foi interrompida por uma operação policial. A polícia Civil e a Polícia Militar entraram no bloco desse dito condômino. Todos os vizinhos se juntaram para ver ele ser preso, todos estávamos certos de que ele era envolvido com algum ilícito. Essa operação policial era apenas a confirmação que faltava.

Então, quando a polícia chegou na porta do apartamento e invadiu, ninguém entendeu o que estava acontecendo, entraram no apartamento vizinho ao dele e ignoraram o nosso suspeito.

Inesperadamente, prenderam um camarada muito conhecido entre os moradores, trabalhava como professor e era extremamente boa praça.

Todos pensávamos que polícia havia errado o alvo, mas, depois descobrimos que o professor era realmente um dos traficantes barra-pesada.

Logo após toda a operação, o vizinho da Ferrari saiu, pegou o carro dele e foi embora. Para agravar e reforçar nossa tese, ele nunca mais voltou para o apartamento.

Jamais teremos nossa tão esperada confirmação dos crimes que ele praticara. A polícia não voltou mais no condomínio.

Se na realidade ele era culpado ou inocente não interessa. Entre nós já temos o veredito.

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

As artimanhas de Boca de Álcool... n1

As 11h da manhã na rodoviária nova, na Cidade da Esperança, enquanto parei para comer um salgado pra não ter uma turica, um sujeito me aborda. Eu, já estressado e com fome, achei que bastava apenas dizer que não tinha dinheiro e pronto. Engano meu... esse camarada me fez uma proposta e eu, pedindo a Deus que ele fosse embora, mas com o inconsciente mandando eu ser educado, disse:

- Pois não?

Então ele disse:

- Comandante, tenho aqui 30 centavos, preciso chegar a 3,00 reais para tentar comprar uma “latinha”.

Eu, achando engraçado a sinceridade, inventei de dá corda.

- Tu vai tomar cachaça num calor desgraçado desse? Quase de meio-dia?

- Bora ver?

 

- Eu não duvido, apenas admiro sua disposição.

 

- Pois vamos fazer o seguinte, o senhor me ajuda com esses 2,70 e eu te ajudo ali com aquela multa.

Ai foi quando eu me toquei que havia estacionado num local proibido e já tinha um guarda me multando. Eu corri atrás do guarda.

- Ei seu moço! Ja vou tirar o carro, num multe não, por favor.

O caba que tinha me abordado, veio atrás de mim e ficou me cutucando. Eu já puto da vida:

- Diz, macho!

- Major, venha aqui.

Então nos afastamos do guarda e ele me sugeriu:

- Veja só, o guarda não vai tirar a multa assim, não. O senhor tem q molhar a mão dele.

- Homi, deixe quieto. Não sou de fazer isso e fora que eu posso ser preso.

- Posso quebrar um galho pro senhor. Você paga uma latinha pra mim, que eu vou lá e falo com ele.

 

- Se ele não aceitar, pode querer me prender por suborno.

- Prende nada. Eu que vou lá falar com ele. Se der certo, todo mundo ganha, se ele embaçar, você diz que eu sou doido e que só me vê pela rua, que não tem nada a ver comigo. Eu não tenho nada a perder.

Eu pensei: será que isso vai dá certo?

Então concordei:

- Major, se der certo eu tomo essa latinha com você. Ainda boto o refrigerante e um galeto pra tira gosto.

- Fechou!

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Vídeo Histórico sobre as Torturas no Brasil

Segue o link de um documentário chileno sobre a tortura que ocorreu no Brasil durante a ditadura. A Report on Torture (1971), de Haskell Wexler e Saul Landau. Consegui este link no Blog Fanzine Kill http: fanzinekill.blogspot.com.br São duas partes. https://www.youtube.com/watch?v=Kkm9s818xLs VIDEO HISTÓRICO E INEDITO SOBRE TORTURAS NO BRASIL - 1ª parte https://www.youtube.com/watch?v=yFfD4f-lg8w VIDEO HISTÓRICO E INEDITO SOBRE TORTURAS NO BRASIL - 2ª Parte